04 março 2011

À manca com carinho

2005 não foi um bom ano para mim. Quem estava lá viu, sentiu, me viu chorando pelos cantos e corredores. Entretanto, a preocupação de uma pessoa mexeu particularmente comigo naquela longínqua época.

Aquela senhora de cabelos curtos tinha uma intimidade com a história assustadora. Apelidada secretamente de "manca", apresentava-nos Dom Pedro II como "Pedrinho", Napoleão como o "baixinho encrenqueiro" e João VI como o "gordo mal-educado". Estes e muitos outros personagens fizeram parte de nossa escola por dois anos, formando a cada bimestre mais uma leva de alunos interessados em fofocas de vários períodos históricos.

Como todo bom profissional, a senhora de voz imponente aplicava teste difícieis, que exigiam mais reflexão do que decoração de datas. A participação de todos os alunos (que explicavam oralmente o que entendiam dos textos que ela ditava) era fundamental, e difícilmente a senhora manca dava uma nota máxima, o que claramente provocou a antipatia de muitos. Mas sua competência em lecionar se sobressaltava, era o que importava.

Como uma das melhores e mais participativas da turma, tirava um "B" com muito esforço, o que me deixou encabulada algumas vezes. No segundo ano, quando quase todos os meus problemas adolescênticos resolveram florescer de uma única vez, decidi que não iria mais participar das aulas, limitando-me em minha insignificância. E assim passamos quase um mês, embora a vontade de expor minha opinião me corroesse por dentro. Tantos problemas em mente que não conseguia perceber que estava prejudicando apenas a mim mesma, abdicando do gozo de ser aplicada.


Foi então que, na primeira semana de volta às aulas, ela caminhou até a minha carteira e perguntou se eu estava melhor. Surpreendida com a indagação, ela me respondeu com palavras que ecoam há anos em minha mente. "É que antes das férias eu percebi que você estava mal, não quis falar nada, mas quando o aluno é bom a gente fica preocupada. Mas fico feliz que você esteja melhor". A sobriedade daquele elogio pode não ter tido efeito nenhum nela (e nem deveria ter), mas era realmente o que eu precisava ouvir. Dali em diante, eu não iria participar de qualquer aula pela nota, mas porque sabia que existiam pessoas que acreditavam em mim.

Aproximadamente um ano após este episódio, a professora Lilian nos deixou, sem eu ter tido a oportunidade de agradecê-la por tanto conhecimento sobre história e sobre a vida. Nunca pude dizer o quanto eu a admirava, mas tenho certeza que ela sabia disso, afinal, ela sabia de tudo. Sei que ela está bem onde está, discutindo história com o baixinho encrenqueiro e com Pedrinho. Obrigada.

Com o amor de sua aluna quase jornalista graças a você,
Fernanda Alcântara

22 fevereiro 2011

Laranjas e adolescência

O ano é 1971. No início de uma década  posteriormente chamada de “os anos da ressaca” é lançado “Laranja Mecânica” [original The Clockwork Orange], do diretor Stanley Kubrick. O filme, elaborado a partir do livro de Anthony Burguess em 1962, é uma brilhante combinação entre sentimentos, cores e sons, além de servir de inspiração e reflexão à juventude da época.

Para entender melhor o sucesso de Laranja Mecânica, é necessário entender seu contexto. Estamos no final da década de 60, e o sonho já havia acabado. Milhares de pessoas marcham contra a guerra do Vietnã, o rompimento com o tradicional [a contracultura], uma sociedade imersa pelo consumo, a invasão da publicidade e toda a propaganda ideológica da Guerra Fria e o desemprego adquirem uma nova concepção para uma juventude que preocupa uma solução simples e rápida a todos estes problemas.

O filme começa com o rosto do personagem principal, Alex, usando suas vestimentas clássicas que serviriam de inspiração para tantos outros jovens e grupos (em especial os punks), sendo ele quem conduzirá toda a narração da trama. O cenário é uma Inglaterra futurista, onde móveis exibem suas cores e formas exuberantes. Inicialmente, Alex e seus companheiros estão sentados e um bar surrealista. A partir das primeiras cenas já é possível observar a abordagem mais marcante de Laranja Mecânica: a violência. Durante todo o filme, Alex e sua gangue roubam, estupram e agridem gratuitamente civis, que variam de mendigos à civis. Através dos olhos de Alex, somos introduzidos àquela realidade distorcida, à agressão prazerosa. Esta violência urbana reafirma o quanto o filme relata sua época de diversos roubos na antiga Inglaterra, e ainda assim o roteiro continua atual.

A gangue é outro elemento importante que busca suprir a esses jovens a busca de pessoas semelhantes, obedecendo sempre a uma hierarquia, além de encontrar seu lugar no mundoatravés de um grupo. Participar de um grupo transmite o sentimento de participação, irmandade, respeito e lealdade, e essa ideologia foi um dos maiores heranças deixadas pelo filme. Alex era o líder de seus droogs, mas, devido a um desentendimento entre os membros do grupo, perdeu o controle da situação e vai parar na cadeia por isso. A medida em que eles se divertem através da ultra-violência, Alex tenta transmitir de que nunca será corrigido ou pego e sua mensagem se fortalece entre os jovens por se opor ao autoritarismo, o consumismo excessivo e o trabalho alienado, todos esses sinais aproximam mais Alex da realidade dos jovens ingleses.

O filme aborda ainda o poder e a violência do Estado, institucionalizado, amparado pela Lei e justificada pela desculpa da manutenção do controle da sociedade. Alex é utilizado como objeto de manipulação por interesses políticos que o transformam em exemplo bem sucedido de reabilitação. A propaganda estava em seu auge. No final (que não direi óbviamente), ressalta ainda o poder da imprensa, que transformou Alex em vítima. De certa forma, todos este pensamentos forma questões filosóficas, em relação no pensar na vida e de como conseguimos lidar com ela em uma das fases tão complicadas e opositoras que é a adolescência do homem.
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Atividade realizada em 2008 para a disciplina de Filosofia. Assistindo o filme pela enésima vez, pensei: Por que não postar neste meu blog tão abandonado? Prometo que, quando tiver tempo, posto alguma coisa sobre Cisne Negro, minha nova paixão cinematográfica.

 
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