03 setembro 2009

Traços e Rabiscos

Do ativismo ao esquecimento, a trajetória do desenhista que ilustrou a história do Brasil

Canetas e folhas de sulfite em branco, um copo em cima da prancheta, manchas de tinta em um piso de madeira e uma montanha de livros espalhados pelo chão até uma cama de solteiro mal-arrumada no canto do quarto. É fim de tarde no bairro Jardim São Paulo e Jaime Leão está imerso nesta desordem organizada, que revela um pouco do comportamento deste que já foi considerado um dos maiores ilustradores do Brasil.

Nascido em Recife e carioca até os 25 anos, Jaime publicou suas primeiras ilustrações na Editora Brasil América, onde desenhava versões brasileiras de histórias em quadrinhos como Batman, Tarzan e Zorro, entre outras. Nesta época, começou a trabalhar com publicidade, embora não estivesse satisfeito porque "não gostava de ser bem pago para mentir".

em São Paulo, o ilustrador continuou seu trabalho com publicidade até 1971 por se sentir menos censurado nesta área, aproveitando a oportunidade para bater de frente com a ditadura através de painéis e quadros. Jaime especializou-se na arte de expressar críticas à sociedade e ao governo através de imagens:"Ele fazia um texto visual e inteligente para ser decodificado, também de uma forma inteligente. O traço dele é um traço mais forte, mais incisivo, que às vezes as ilustrações não têm", lembra Luís Mauro Sá Martino, jornalista e professor de Comunicação Comparada da Faculdade Cásper Líbero.

Segundo Jaime, mesmo com sua forte ligação com movimentos sociais e de esquerda, na década de 70 ele já havia sido “mordido pela mosca azul da imprensa”, e comprovou sua versatilidade colaborando não só em publicações como Opinião, Monumento, Ex e O Pasquim, mas também na chamada grande imprensa como Realidade, Veja, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo.

Assim como acontecia em outros tipos de manifestações artísticas, seus desenhos eram subordinados à supervisão da censura. Jaime e sua família eram vigiados por policiais e recebiam ameaças quando decidiu exilar-se no Chile. Sob o governo de Salvador Allende, trabalhou em pequenos jornais de esquerda como o El Siglo e o Puro Chile:“Só voltei ao Brasil porque Lility [filha mais velha] estava doente. Fico triste porque não consegui retornar a tempo do golpe militar instaurado no Chile, pois minha disposição naquela época era muito grande, fosse para matar ou morrer". Sua atitude militante lhe rende algumas prisões na volta ao Brasil em 1973, e na década de 80 chegou a ficar cerca de uma semana em cárcere sem saber onde estava, sem qualquer acusação formal.

Muitos de seus trabalhos foram destruídos pela repressão. Entre um contato e outro, Jaime tenta recuperar hoje o que sobrou para poder fazer uma exposição e talvez até formar um acervo. Com seus 64 anos, Jaime não incomoda mais o governo. Discreto, este senhor com barba e cabelos grisalhos ainda desenha com precisão trabalhos ricos em detalhes e, quando possível, satíricos. É possível encontrar suas ilustrações em periódicos como Globo Esporte com cartuns de estilo mais cômico, e em revistas como Pequenas Empresas & Grandes Negócio e Você S.A, onde faz caricaturas e desenhos voltados a conselhos para executivos, porém sempre com uma dose de humor.

Com o avanço tecnológico e a excelente aptidão dos designers gráficos, a arte de usar pincel e tinta para dar vida aos desenhos acabou desvalorizada no mercado. Entretanto, Jaime responde com antipatia a esses avanços, revelando não usar computador por considerar-se um reinventor do próprio estilo: “Como não tive formação escolar, minha habilidade vem da prática, e não da teoria. Tudo o que eu sei veio de muita leitura, desenhos que eu já fazia, o exercício de escrever muito e o estudo a fundo”. Ele desabafa que mesmo com todos esses progressos, a ilustração cumpre hoje o papel dela, pois existem trabalhos muito bons e péssimos, como em qualquer período: "O importante é valorizar a obra, não importa o veículo em que se esteja".

Além de se manter fora das mídias eletrônicas como internet, Jaime Leão afirma que seu afastamento da grande imprensa se deu também após a publicação de uma matéria sobre Hugo Chávez na Playboy, em 2005. Jaime, que sempre teve admiração pelo presidente venezuelano, ilustrou o texto sem saber que o conteúdo era desfavorável ao político, e além de não trazer a assinatura do autor, o único nome que aparecia era o de Jaime em sua ilustração. Ele sentiu-se revoltado com a falta de comprometimento da revista e nunca mais foi procurado pela mesma: “Hoje, a censura persiste, não de um modo formal, mas sim editorial. A imprensa está acovardada, quase sem nenhum movimento de resistência".

Seu ativismo de extrema-esquerda contribuíram para que ao longo dos anos Jaime Leão não só perdesse contatos profissionais, mas também serviram como o motivo de seus três divórcios. Em 2005, após uma segunda separação traumática, sua esposa Verônica mudou-se com suas três filhas, e desde então ele não teve mais notícias delas e tenta através de contato com amigos reencontrá-las.

Esquecido pela imprensa e pela família, ele contribui hoje com ilustrações de livros didáticos para a Editora Ática, capas de CDs e pequenas participações em livros.

Artista, militante, boêmio. Jaime Leão é indiscutivelmente uma testemunha de seu tempo, que foi desenhando seu espaço nas páginas da história do país. Hoje não tem nada a perder nem a ganhar, uma voz rouca no avassalador mundo da imprensa.

1 Reações:

Anônimo disse...

Tive o prazer de conviver com esse grande amigo por alguns meses em Palmas no Tocantins. Lembro me com clareza do Jaime desenhado as mossas da mesa do lado. chamava a atenção pelo belo trabalho de fazer cartuns criados na hora. Cômicos com certeza
mais todo mundo adorava
Um Abraço amigo Jayme

Douglas

 
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