26 fevereiro 2010

A Escrava Rainha

A história de Madame Satã, o malandro mais famoso do Rio de Janeiro

Rainha e malandro da Lapa. Assim é conhecido João Francisco dos Santos, ou Madame Satã, personagem que se tornou mito na noite carioca e que é redescoberto no livro Madame Satã – Com o diabo no corpo, do jornalista Rogério Durst. Nesta biografia, o jornalista procura restaurar a história do malandro mais famoso do Rio de Janeiro e que passou cerca de um terço da vida na cadeia, destruindo o estereotipo do homossexual como frágil e delicado.
A construção da biografia de Madame Satã não acontece de forma cronológica. Rogério Durst procura descrever a Lapa, no Rio de Janeiro, principalmente nas décadas de 30 e 40 e a partir disto falar sobre sua personagem. O bairro transpirava boemia e agitação serviu de palco para aquele considerado “malandro autêntico”, aquele até certo ponto honesto, cheio de dignidade, consciente de sua profissão de malandro. É nesse cenário que surge João Francisco dos Santos, e sua interação com este mundo “devasso e fedorento” é que resultará em uma personalidade que mistura raiva, criatividade, violência, doçura.
Assim o autor começa com um prólogo sobre o bairro da Lapa, sobre a malandragem, sobre o contexto histórico, colocando o leitor nos anos 30, com todo o glamour e boemia desta primeira parte do século e onde a personagem reinou.
A partir de sua segunda prisão é que acompanhamos então a história João Francisco dos Santos. A personagem começava a fazer sucesso com o seu sonho de ser artista, cantando em pequenos bares no Rio. Entretanto, João Francisco não era daqueles que aguentam provocações, assumia sua homossexualidade, mas reafirmava que não deixava de ser homem por sua opção, e o resultado deste comportamento explosivo foi a o assassinato a um guarda que o ofendeu gratuitamente em um bar onde se apresentava como a Mulata do Balochê. A partir deste episódio João Francisco entra definitivamente na vida da malandragem.
Com seu chapéu panamá, camisa de seda e calça almofadinha, o malandro se transformava nos palcos, ao mesmo tempo em que sua paixão pelo teatro foi interrompida várias por problemas com a polícia. Em 1938 sai da prisão após dez anos na Ilha Grande (onde passaria mais de 27 anos da sua vida), e cria uma fantasia decorada com lantejoulas, inspirada num morcego do nordeste do Brasil, em um dia de carnaval no desfile do Bloco “Caçadores de veados” . É ali que, vitorioso e renascido, nasce a lenda Madame Satã.
O próprio apelido sintetiza a ambiguidade do personagem: Madame, feminino, sofisticado, delicado em oposição a Satã, masculino, violento e destrutivo. De temperamento violento e protetor dos meninos de rua e prostitutas da Lapa, ele é fruto de uma sociedade que o rejeitava por ser pobre, mulato e homossexual. Filho de ex-escravos, não é a trajetória deste um garoto trocado pela mãe por um burro que Durst trás a tona. A intenção é ressaltar o malandro mais temido pelos policiais do Rio de Janeiro, o mulato de forte temperamento, ágil na capoeira e com destreza no uso da navalha, que acreditava que homem de verdade se defendia com a esquerda, mas que não tinha vergonha de correr quando sabia que não dava conta.
Em Madame Satã – Com o diabo no corpo, o autor nos conduz às aventuras da personagem não através de referências bibliográficas sobre a personagem (quase inexistentes hoje), mas através da memória coletiva e da história da boemia da Lapa. Aos poucos ele consegue se distanciar do mito Madame Satã e revela o lado humano de João Francisco dos Santos, que sozinho adotou cinco crianças de rua.
Segundo Nanami Sato, Professora de Língua Portuguesa dos cursos de Jornalismo e Rádio e TV da Faculdade Cásper Líbero, as biografias, gênero literário que tem crescido cada vez mais, também fornecem material para o cinema e a TV, lembrando revistas de fofocas, realityshows e talkshows de cunho biográfico envolvendo celebridades. No caso, Madame Satã de Rogério Durst serviu como inspiração para o filme com o mesmo nome, do diretor Karim Aïnou, que ilustra apenas alguns anos do malandro, fase que o diretor chama de pré-mito, mas que também serve de referência para apreciar a personalidade da personagem principal.
Mesmo não seguindo um formato cronológico, Madame Satã busca, através da pesquisa detalhada e do ano das prisões, lembrar sempre ao leitor a situação política na qual a personagem está envolvida. Quando Satã sai de sua última prisão (1955-1965), sua Lapa já não é a mesma, e ser malandro já não é algo de orgulho como antes. Nanami Sato considera que o papel da biografia não se confunde com romances, mas elas devem construir uma narrativa plausível e interessante. Sendo assim, Madame Satã – Com o Diabo no Corpo desempenha com êxito sua tarefa, reconstruindo a trajetória de homem ambíguo.
Quando Rogério Durst traz para a biografia a irreverência que caracterizava seus textos como crítico de cinema, torna o texto muito mais sintético e facilita a leitura. Jornalista e repórter, Durst é autor de outros livros como Anjo Caído e Geração Paissandu, mas de fato é em Madame Satã que o autor irá expor seu orgulho e amor carioca, ilustrando as glórias e tristeza da cidade em um discurso nostálgico.
Construindo invenções e reinvenções de si mesmo, Madame Satã se tornou um mito muito maior do que João Francisco dos Santos jamais imaginaria. Foi cozinheiro de pensão, matou um guarda, foi mãe e pai, homem, malandro. Mesmo conhecendo o final trágico (a morte, em 1976, sem nenhum reconhecimento), sua biografia é um resgate social, histórico, cultural, enfim, uma viagem dual e confusa, pelo submundo da Lapa dos anos 30.

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